LOUVEIRA: Partida apoteótica de Ruy de Oliveira: novelista, memorialista e perfeito cavalheiro

Ruy e o amigo Jorge Lemos no encerramento da Semana do Escritor Louveirense
A FOLHA NOTÍCIAS esteve conversando com amigos e admiradores do escritor e poeta Ruy de Oliveira, que nos deixou de repente no alto de seus 94 anos, na madrugada de sábado, 23, horas depois de ter sido homenageado de forma apoteótica na noite de sexta-feira, 22, durante o encerramento festivo da 1ª Semana do Escritor Louveirense, realizada no auditório da Câmara Municipal de LOUVEIRA.
Ruy estava bem, feliz, pleno de amor e de lindas manhãs que há mais de nove décadas lhe visitavam com ternura. Mas pegou todo mundo desprevenido, com o atenuante de que uma pessoa com a sua qualidade humana torna-se imortal ainda em vida no coração de cada um que teve a oportunidade de conhecer o ser especial que Deus fez questão de manter entre nós pelo maior tempo possível.
A FOLHA NOTÍCIAS curvou-se ao seu talento e bondade e lhe concedeu um espaço para o exercício semanal da inteligência e da sensibilidade. Junto com queridos amigos de letras e de sonhos, como Ademir Tasso, Jorge Lemos, Wladimir Novaes, prestamos uma improvisada homenagem àquele que frequentou o território da existência deixando um imenso legado generoso de gentileza, talento e probidade.
MEMORIALISTA
O escritor e advogado, membro da Academia Metropolitana de Letras, Artes e Ciências (AMLAC), Wladimir Novaes, revela que conheceu Ruy de Oliveira à distância, através de suas crônicas na FOLHA NOTÍCIAS. “Para mim verdadeiras memórias, lembrando, nesse aspecto, o trabalho memorialista do Jorge Lemos, mas sem a mesma agressividade, sempre se referindo à escola que frequentou, à primeira professora, aos amigos, à cidade onde viveu, li todas, até a última”.
Wladimir lembra que um dia recebeu uma carta do Ruy escrita a máquina em que comentava sobre o seu livro ‘Histórias de José Novaes’. “Então enviei para ele um pacote de livros e ele respondeu outra carta e só então reparei que morava em uma Clínica de Repouso, e me programei para visitá-lo no devido tempo. Descobri o telefone da clínica, mas ele estava viajando pelo Sul. Finalmente consegui falar com ele e o convidei para tomar um café comigo. Pensei também ir lá à clínica para vê-lo e aproveitar para contar umas histórias, uns casos, mas devido aos afazeres terminei sem conhecê-lo pessoalmente.”
Sobre o estilo literário do Ruy, Waldimir comenta: “senti que se tratava de uma pessoa sozinha que encontrava na literatura uma maneira de conversar com o mundo. Mas o seu estilo me lembra também o de Érico Veríssimo ao narrar os fatos, os momentos de sua vida, nos levando a viver com ele esses momentos. Mas me lembrou também o Monteiro Lobato. Pelas crônicas que li o Ruy me passou que se trata de um retratista da memória, um narrador que escreve de forma leve sem usar palavras difíceis, e o fazia com muita qualidade. Na verdade não era um articulador, mas um escritor literário e tinha essa qualidade que para mim era muito boa. Comparo aos grandes escritores daqui, como o Jorge Lemos e o Zechin”.
RADIO NOVELISTA
Já o escritor Ademir Tasso, maior amigo do escritor, conta que conheceu Ruy entre os anos 68 e 69, na antiga Rádio São Paulo onde produzia radionovelas. “Eu trabalhava no mesmo horário da esposa dele, Odete Liz, e ele ia buscá-la todos os dias. Nessa época o Ruy trabalhava em uma agência de publicidade. Odete era a segunda esposa dele, a primeira esposa foi a Mirza, mas eles se separaram. Com o passar do tempo a Odete adoeceu, a Rádio São Paulo fechou e cada um foi para o seu lado, mas eu continuei mantendo contato com o pessoal mais chegado e ligava para a Odete, mas ele sempre atendia dizendo que a esposa não estava. Eu nunca tinha conversado com ele, e só depois fiquei sabendo que ela estava muito doente e acabou falecendo. Foi a partir da morte da esposa que nos tornamos amigos e ele começou a contar todo o sofrimento que teve com ela. Então fui a São Paulo visitá-lo no apartamento dele. Nessa época eu morava em VINHEDO e o convidei para passar um final de semana em minha casa até que um dia, 12 de outubro de 1982, ele apareceu, e a partir daí nunca mais a gente se separou. Todo fim de semana ou eu ia a São Paulo ou ele vinha para VINHEDO.
EM LOUVEIRA
Quando mudei para LOUVEIRA ele adorou a cidade e passou a vir de trem, até que sofreu uma queda quando trabalhava na Rede Nacional de Missões Católicas como produtor dos programas de rádio. Ele caiu saindo do trabalho, teve que colocar uma prótese, mas deu problema e teve que usar muletas. Ruy era muito conhecido como radionovelista. Quando também se mudou para LOUVEIRA, ele chegou a escrever várias novelas para uma rádio que tinha por aqui, a Rádio Digital, do Karmanghia, onde eu tinha um programa chamado ‘Estórias que o sertão canta’, e o Ruy radiofonizou muitas das histórias contadas nesse programa.
Mas a literatura só entrou em nossa vida quando começamos a organizar a Associação dos Escritores de LOUVEIRA e o Ruy tinha um livro de poemas, ‘Rumo inadiável’, do qual tenho dois exemplares. Mas eu não sabia que ele já tinha conhecido o Jorge Lemos. Acontece que o Jorge ia muito à minha casa por conta da fundação do Lions Clube, do qual somos fundadores, e em uma dessas ocasiões ele encontrou o Ruy e aí se lembraram que se tinham conhecido muito antes em São Paulo. Ele sempre me dizia que gostaria de escrever no jornal FOLHA NOTÍCIAS. Então eu o apresentei ao Julliano Gasparini, fundador do jornal que ficou interessado, e depois de algum tempo o Ruy começou a escrever para o jornal. Foi um prêmio para ele! Ficou muito feliz porque tinha agora uma tarefa semanal para fazer, e era uma tarefa muito importante para ele, que escrevia e corrigia até ficar do jeito que queria, e ai se alguém digitava uma palavra errada, ninguém aguentava o Ruy (risadas).
CRONISTA DA FOLHA NOTÍCIAS
Ruy gostava de escrever cenas sombrias, temas relacionados com a morte, inspirado em Edgar Allan Poe. Mas nas crônicas para o jornal resolveu escrever sobre as suas lembranças. Ruy era uma pessoa muito polida, cortês, carinhosa, exigente, porque sempre buscava a perfeição, conversava sobre qualquer assunto com desenvoltura e adorava filmes antigos. Encarava os fatos com realismo. Durante todo esse tempo em que teve dificuldade para se locomover nunca reclamou de dor nem tomou remédio algum. Ele dizia que a dor era muita, mas não falava para não importunar as pessoas e que a dor aumentava se falasse.
IMORTAL DA AMLAC
Eu o apresentei a quase todos na AMLAC e todo mundo se encantou com ele. Uma vez eu falei para o Jorge Lemos: “vamos indicar o Ruy para a AMLAC”. Eu tinha sido apresentado pelo Julliano, mas o Jo Bichara chegou antes e o indicou, e todos nós apoiamos. Acho que ele se foi do jeito que queria e mereceu: APOTEOTICAMENTE. Fechou o palco, escreveu ‘The End’. Naquela noite foi aplaudido de pé. A mesa diretiva se desfez para abraçá-lo. Ele se despediu de toda a plateia, e na minha vez disse: “Eu te amo, não se esqueça”, conta José Ademir.
UM HOMEM ESPECIAL
Assim é que o escritor Jorge Lemos define o seu saudoso amigo Ruy de Oliveira. “Ele veio para Campinas trabalhar como jornalista e eu também. Trabalhei na sucursal do Diário Carioca na editoria geral. Mas quando fui para a Rádio Nacional, Ruy trabalhava na Rádio São Paulo onde estava se tornando um grande nome. Até então não nos conhecíamos, mas o nosso encontro estava marcado para breve. Foi na Associação Paulista de Propaganda, no Dia do Plubicitário, e nos cumprimentamos porque eu tinha certo interesse naquilo que ele fazia.
Em 59 deixei a TV, rádio, jornal e fui para a publicidade. Ele tinha uma escola de artes onde produzia radionovelas e nossa agência comprava seus trabalhos. Eu fui para a Leo Publicidade e Estudos Econômicos para conduzir o departamento de rádio, TV e cinema. Nós comprávamos os horários de televisão e produzíamos os grandes programas.
Quando deixo a Leo Publicidade o Ruy assume no meu lugar. Até que em LOUVEIRA, em uma noite de sábado, no encontramos na casa do Ademir Tasso. Não éramos de encontros frequentes, até que ele também resolveu vir para LOUVEIRA para ficar no lugar onde morou e morreu. E foi a partir da sua vinda que nos conhecemos melhor. Ele gostava do meu trabalho e eu também do dele. Era uma figura humana acariciante. Ele nos envolvia com o seu respeito profundo. Às vezes fazia restrições ao meu trabalho, de outra vez me incentivava com elogios e então trocávamos grandes ideias juntos. Era a ‘Hora da Saudade’ que percorremos à distância ao longo de nossa vida profissional.
Ruy esteve uma única vez aqui em casa pela dificuldade que tinha de se locomover. Veio com Ademir e Elza e levamos duas horas e meia conversando. Nessa ocasião lhe dei dois livros meus que ele não conhecia e pedi que desse o retorno. Era um ser humano especial, tinha um carinho e um respeito muito grande para com minha mulher, Estefânia. Era um ‘gentleman’, um cavalheiro em todos os sentidos. A cada quinze dias nos telefonava e passava de 3 a 5 minutos conversando com Estefânia. Como novelista foi excepcional, como escritor foi um grande intelectual mal compreendido. Ele não deu à literatura o seu verdadeiro potencial, tinha muito mais para dar e poderia ter dado, ele falava de coisas que gostaria de ter produzido, e não fez. Mas mesmo estando em uma cadeira de rodas nunca perdeu a verticalidade. E as últimas palavras que disse na sexta-feira na hora em que nos despedimos foram: “onde está Estefânia, quero falar com ela. Trouxe Estefânia e ele disse: “eu vim do sul e trouxe um mimo, não é um presente, porque você é uma mulher que eu admiro, respeito e amo”.
Esse era o Ruy. Eu bati um longo papo com ele na hora do seu enterro, arrependido por não ter conversado mais com o meu amigo, para ouví-lo mais. Quando toquei minha mão no seu peito eu senti o seu coração bater, era o coração de Deus”.